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A pior viagem do mundo; ou: o horror na Bolívia!

Não sou exatamente o tipo que gosta de botar um mochilão nas costas e sair por este mundo em busca de aventuras. Minhas férias ideais se parecem muito mais com Miami do que com Mali. Mas sou o tipo que se contradiz: quando meu irmão me convidou para uma aventura no Salar do Uyuni, o deserto de sal no meio da Bolívia, em 2010, aquela ideia me pareceu razoavelmente sensata. Só quatro dias, três com banho quente. Paisagens imperdíveis. Fotos incríveis. Dentro do orçamento. Uma oportunidade de passar tempo ao lado dele. Será lindo, ele me garantiu. Vamos? Vamos.

Antes da Bolívia, passamos alguns dias no Chile com outros amigos, com direito ao hedonismo habitual das férias juvenis: comida boa, muita risada e bebedeira. Tanta que devido a uma noitada além da conta, acabei perdendo meu voo para Sao Pedro do Atacama, o ponto de partida da nossa viagem pela Bolívia.

Um presságio que infelizmente não soube reconhecer.

De San Pedro do Atacama para Uyuni

Era noite quando cheguei a San Pedro, com 12 horas de atraso, e a viagem começaria no dia seguinte pela manhã. Fui devidamente advertido do frio, mas o lugar onde ficamos, por contenção de despesa, era bem mais inóspito do que supunha. O vento passava pelas rachaduras como se cruzasse as portas escancaradas de uma Igreja. Todos os cantos do nosso quarto-cabana eram mais empoeirados do que um livro do Stephen Hawkings. Dormi bastante mal, mas estava com o coração cheio de otimismo pelo começo da viagem. Um aventureiro! Um espírito livre! Um idiota rumo ao desconhecido!

O trajeto seria feito em dois grupos — um jipe de brasileiros (eu, meu irmão e quatro mineiros que conhecemos em San Pedro) e um de franceses. Os motoristas de ambos eram guias bolivianos. O destino final era Uyuni, uma viagem que levaria duas noites e três dias, com paradas no Salar, na famosa árvore de pedra e num hotel de sal que prometia ser aconchegante mesmo para os padrões de um deserto boliviano.

Primeiras cinco horas: tudo muito bonito.

Foram cinco horas de viagem até o local onde passaríamos a primeira noite. Em condições normais, seria a pior de todas, já haviam nos avisado. O lugar era um casebre com uma mesa grande no centro, quartos pequenos e, claro, muita poeira. A ideia era chegar lá, retirar as malas do jipe e fazer um bate e volta até a chamada “Lagoa Azul”, se me recordo bem do nome.

Eis que surge o primeiro imprevisto: a viagem até a “Lagoa Azul” fora cancelada porque havia uma forte tempestade de areia nos arredores, o que tornava perigosa qualquer viagem de carro. Fazia muito frio, e do meio dia até a manhã do dia seguinte, ficamos sentados no casebre sem muito o que fazer. O lugar não tinha eletricidade. Acho que tinha um baralho, mas o tédio logo tomou conta de todos. Os franceses não eram amigáveis, inclusive no odor.

A janta foi um ensopado de água e algo que remetia a batatas. Quatro quintos de água, um quinto de quase-batatas, para ser mais exato. Naturalmente, a noite foi um horror. Ventava muito mais do que o nosso já saudoso hostel de San Pedro: o teto era feito de algo parecido com sapê. Mas a perspectiva de melhora é parte importante de como vemos a situação presente. No dia seguinte, pensava, estaríamos no hotel de sal, com banho quente e cama gostosa, conforme prometido. Tudo ficaria bem.

Acordados, nosso guia ainda estava em dúvidas se valia a pena seguir viagem diante da incerteza do clima. Numa cúpula com seu colega, como se decidissem o lançamento de uma nave espacial, ficou resolvido que partiríamos ainda antes do almoço. Malas de volta ao jipe e seguimos viagem conforme o combinado, por volta das 10h30 da manhã. Uma hora depois e o vento de areia que atingia o jipe começou a se intensificar. Depois de um tempo, já não havia diferença entre poeira e ar respirável. Sentado à janela, meu casaco transformou-se de cinza em marrom.

Por sorte do acaso, ficou registrado em vídeo o momento em que ficamos sabendo que chegar ao hotel de sal seria tarefa impossível. “No llegamos”, disse o guia. “No?”. “Es imposible”.

“Muy frio?” — Notem que o jipe está parado: o barulho é a tempestade de areia lá fora.

Com sorte, tentaríamos estadia num vilarejo próximo, fora de nossa rota, mas conhecido dos nossos motoristas e com eletricidade. Mas dirigir era perigoso porque quase não se via um palmo pra fora da janela, além das pedras que poderiam estar no meio da ventania. Precisávamos ficar parados até a tempestade aliviar. Ficar parado, porém, também não era uma opção sem riscos. Com muita areia, corríamos o risco de ficar atolados. Trade-offs da vida, andávamos cerca de cinco metros a cada meia hora, se tanto. Imagino que tenham se passado umas três horas nessa velocidade quando finalmente o motorista resolveu que já era seguro continuar viagem em ritmo mais acelerado. Em meia hora, chegamos ao prometido vilarejo.

Tiramos as malas no meio da tempestade e fomos recepcionados por umachola bastante simpática, que já avisou a boa nova: devido à tempestade, não havia eletricidade. Portanto, nada de banho quente. Janta só na fogueira.

Deveriam ser por volta das três da tarde quando chegamos ao vilarejo. A coisa que chamou a atenção de todos foi uma llama em cima de uma pequena caminhonete estacionada bem em frente à única janela da casa onde estávamos hospedados.

A llama em meio a tempestade era a nossa televisão. Nosso passatempo.

Em algum momento, a chola saiu para fora da casa e colocou uma venda preta sobre os olhos do animal. Mas que espirituosa, pensei. Protegendo os olhos do bicho contra os ciscos de areia.

Mal tive tempo de terminar o pensamento quando, como Uma Thurman em Kill Bill, a mulher lançou um facão debaixo da saia e num só golpe estourou o pescoço do animal. A cabeça rolou pelo chão e o corpo caiu na caçamba da caminhonete. O pasmo foi geral: aquilo pegou todos nós desprevenidos. Diante daquela cena desoladora, com a cabeça do bicho caída ao chão, concluímos resignados: num lugar desses, a natureza é muito mais cruel.

Muitas horas de tédio depois, finalmente alguém nos chamou para jantar. O cardápio, claro, você pode imaginar: sopa de lhama. Um pouco constrangidos, todos comemos muito. Llama tem gosto de frango.

Desnecessário dizer que a noite, mais uma vez, foi extremamente desconfortável. Ventava menos dentro do quarto, mas com dois dias de tempestade, havia muita poeira nas camas. Me lembro de abrir a torneira para escovar os dentes e a água sair completamente marrom. Com o frio que fazia, foi consenso tomar banho apenas com uma xícara de água, limpando as partes íntimas e o rosto.

Acordamos no dia seguinte, atrasados no nosso roteiro. Precisávamos chegar a Uyuni até o fim do dia, e até o momento tudo que tínhamos visto era pó e ventania pela janela do jipe. A tão famosa árvore de pedra ficaria para a próxima viagem, todos concordamos. Nossa meta era cruzar o Salar, fazendo uma pequena pausa na Ilha Incahuasi, uma espécie de óasis no meio do deserto de sal, local de um antigo vulcão.

.Meu irmão pisando em mim: vai ser legal, vamos?

Fotos bonitinhas tiradas na ilha, seguimos viagem porque ainda estávamos atrasados. Saindo do salar, reencontramos o jipe dos franceses, de quem havíamos nos perdido pela manhã. O jipe deles seguia à frente por uma estrada de terra. Num momento de perspicácia, nosso motorista nos disse: o estepe do carro da frente está prestes a cair. Buzinamos como se Evo Morales tivesse vencido a presidência eterna da Bolívia, mas os franceses ficaram surdos aos nossos avisos. Em poucos minutos, o estepe caiu no meio da estrada. Movido pelo espírito hermano, paramos para pegar o pneu. Era muito caro e sairia do bolso do motorista, disse nosso guia. Valia a pena ajudá-lo. Com algum esforço, conseguimos amarrá-lo em cima do jipe.

Nem mesmo meu estado de espírito desalentado teria previsto o que aconteceria em seguida: num desses sobe e desce da estrada, ouvimos um barulho gigantesco sobre nossas cabeças e a próxima coisa que vimos foi o estepe do colega espatifando-se contra o para-brisas, que explodiu duma só vez. O pneu, como que por milagre, ficou equilibrado em cima do capô. O carro tornou-se um misto de poeira e vidro, mas ninguém ficou ferido, com a notável exceção do humor do nosso guia.

Nosso motorista até então se parecia um monge budista, resignado diante da situação infeliz pela qual estávamos passando. Mas o episódio do para-brisas o transformou numa criatura irreconhecível. Ele gritava e chorava e fazia sons como o de uma lhama parindo uma horda de pequenos bichos. Havia razão para desespero, aparentemente: estava preocupado porque teria de arcar com os custos do novo vidro, muito fora de seu orçamento.

Concordamos que faríamos uma vaquinha para ajudá-lo, mas o anúncio da contribuição não foi suficiente para que ele tirasse o pé do acelerador, indo a uma velocidade bem maior do que o recomendável para um carro sem vidros frontais. Ventava muito, claro, mas ele queria chegar logo a Uyuni para consertar o veículo. Nossos pedidos para que fosse mais devagar eram totalmente ignorados.

A bem da verdade, todos queríamos chegar logo a Uyuni. Finalmente poderíamos tomar um banho quente. Comer comida decente. Descansar antes de pegar o ônibus que nos levaria para La Paz — uma viagem que duraria em torno de 15 horas.

De Uyuni para La Paz

Ao chegar em Uyuni fomos recebidos com duas notícias ruins: 1) por causa da tempestade de areia dos últimos dias, a cidade também estava sem eletricidade, o que invalidava a parte do banho quente. Mas pior: 2) sem luz, os caixas automáticos não funcionavam, de modo que tanto eu como meu irmão não tínhamos mais dinheiro para, bem, basicamente nada. Nos centavos, e isso não é força de expressão, conseguimos fechar o montante necessário para comprar as duas passagens de ônibus para La Paz. E foi só. Comemos graças à compaixão dos colegas mineiros. O ônibus partiria de Uyuni à meia-noite.

Portanto essa era a nossa situação naquele momento: fazia três dias que não tomávamos banho, não comíamos direito e dormíamos muito mal. Nada do que estava programado no nosso tour foi possível ver (com exceção da ilha do salar). Eu e meu irmão não tínhamos um centavo no bolso. Eu estava cansado, mal humorado e arrependido de ter aceitado participar daquela viagem ridícula.

O que eu não sabia, claro, era que tudo que tínhamos passado até ali era apenas o prólogo para o verdadeiro desastre que viria a se tornar nossa viagem.

Conforme agendado, o ônibus saiu à meia noite da rodoviária de Uyuni. O nosso em particular era formado exclusivamente de turistas — canadenses, russos, americanos, espanhóis, ingleses, holandeses e brasileiros (das nacionalidades que me lembro). Sentei junto ao meu irmão e desmaiei na poltrona. Seriam 15 horas de viagem, atravessaríamos o salar mais uma vez, desta vez em direção a La Paz.

Mais ou menos duas ou três horas depois de termos partido, no meio do salar, sentimos o ônibus deslizando. Durou pouco, e deu pra sentir que alguma coisa havia acontecido, embora não desse pra saber exatamente o quê. O motorista parou, saiu, voltou e avisou que estávamos encalhados.

O deserto de sal no inverno, durante à noite, faz temperaturas de até -20 graus Celsius negativos. Como devem imaginar, não havia força humana capaz de desatolar o ônibus naquele clima. Tentamos em vão e resolvemos esperar pelo sol da manhã para tentar novamente.

Fora do ônibus à noite: muito, muito frio.

Eu sei que a temperatura era realmente fria dentro do ônibus porque meu irmão, que adora mochilar e não é o que podemos chamar de “fresco”, chorava ao meu lado por causa do frio, principalmente nos pés. Não era o único que chorava, aliás. Não me lembro o motivo, mas o ar-condicionado não podia ficar ligado com o ônibus parado.

O ônibus encalhado.

Ao raiar do dia, saí para averiguar o que havia acontecido. Fui o primeiro a descer do ônibus, e revendo o video abaixo vejo que meu humor até era bastante bom, dada as circunstâncias. Noto também meu rosto arredondado, que nunca mais encontrei depois desta viagem. O primeiro choque foi perceber que não fomos os únicos a ficar presos no deserto: haviam outros três ônibus à frente, dois atrás e um caminhão atolados, todos na mesma fileira. Todos, absolutamente todos, com exceção do nosso, eram compostos por cidadãos bolivianos. Uma informação aparentemente banal, mas que se tornará importante mais para frente.

O que vimos ao acordar, atolados no meio do salar.

Com tantos ônibus parados, me parecia óbvio que em breve chegaria ajuda. Logo cedo vi uma leva de bolivianos do ônibus que estava imediatamente atrás do nosso partir de volta para, presumo, Uyuni. Mesmo na velocidade dasCholas, era possível que atingissem algum vilarejo dentro de algumas horas. A empresa de ônibus seria alertada e seriamos resgatados.

Enquanto isso, começamos uma operação para desatolar nosso ônibus. Perto dos outros, o nosso parecia em melhor condições para sair do atolamento. Retiramos todas as bagagens, calçamos o pneu atolado, empurramos, aceleramos, pulamos de um único lado pra fazer peso: o maldito não mexia um dedo.

Iniciou-se uma conversa se deveríamos seguir a pé de volta para Uyuni. Note-se que, claro, não havia sinal de celular ou rádio no meio de deserto de sal, de modo que não havia como fazer contato com ninguém. Deviam ser cerca de meio dia quando as primeiras pessoas que não faziam parte de nenhum dos veículos atolados chegaram ao local.

Era uma caminhonete que levava três cholas e duas panelas enormes na caçamba. Como num filme de zumbis, a caminhonete foi cercada pela horda de humanos esfomeados. Começou-se uma intensa troca comercial. Maças e sopas por pesos bolivianos.

Se dependesse apenas dos cidadãos bolivianos, tenho certeza que o capitalismo teria um futuro brilhante por lá.

Eu e meu irmão ganhamos uma maça de alguém, e também comemos bolacha de sal que havíamos guardado. Findado o comércio, a caminhonete se foi prometendo pedir ajuda.

Uma hora mais tarde pensamos que seríamos salvos: um trator gigantesco chegou até nos. Ele parou ao lado do caminhão, depois ao lado do ônibus atrás do nosso e por fim chegou até nós. Sempre parava na janela do motorista, falava alguma coisa e seguia até o veículo da frente. Falou algo muito rápido com nosso motorista, que nos traduziu: não é um trator de resgate porque não trouxe um cabo de reboque. Estava ali apenas por curiosidade.

APENAS

POR

CURIOSIDADE

Apenas por curiosidade pensei que o sujeito era um idiota. A revolta dos gringos, claro, não foi pequena. Como pode um trator daquele tamanho, sabendo que estávamos atolados, não se agilizar pra trazer um cabo pra tentar nos rebocar?

Mistérios de um país sul-americano.

Uma hora mais tarde um jipe apareceu na direção contrária, sentido Uyuni. Parou ao lado do nosso ônibus e um grupo de holandesas resolveu que pegaria carona de volta a Uyuni, onde poderiam pedir ajuda.

Nunca me esqueço do menino com a camiseta do Che Guevara berrando que elas deveriam ligar para a embaixada americana, “porque só eles iriam resolver essa situação”.

Quando questionado sobre nosso destino, nosso motorista só sabia dizer que a “ajuda chegaria em algum momento”, sem dar detalhes, até porque ele se encontrava tão incomunicável quanto nós. E era evidente que dizia aquilo mais para nos acalmar do que com certeza dos fatos.

As holandesas se foram e nunca soubemos de seu paradeiro. Cerca de uma hora mais tarde um caminhão chegou ao local. Desta vez, vitória: carregava um cabo para rebocar. Porém: tinha ordens expressas de apenas desatolar os ônibus com bolivianos, não podendo mexer no ônibus de turistas.

De novo: tinha ordens expressas de não mexer no ônibus de turistas!

O caminhão tentou desatolar todos os outros veículos, mas o nosso, que, como disse, parecia em melhor situação para sair dali, ele passou batido. A revolta agora era generalizada. Aventou-se a possibilidade de tomarmos o caminhão à força. Percebendo o perigo, o caminhão deu meia volta e sumiu no horizonte do deserto.

Continuávamos todos atolados — bolivianos e estrangeiros.

Além da caminhonete de comida, o trator, o jipe das holandesas e o caminhão de reboque, o único contato com outras vidas que tínhamos eram os pequenos pontos que passavam de um lado para o outro; muito, mas muito longe em direção ao norte do deserto. Eram carros ou caminhões que também cruzavam o salar, mas no deserto, sem pontos de referência, era difícil dizer quão longe estavam de nós. Mas um desses ponto não se mexia. E parecia relativamente grande perto dos outros. Pensamos que poderia ser um ônibus que estava nos esperando.

Mais uma noite naquela situação não era algo que nenhum de nós estávamos prontos para encarar, não só porque a comida e a água agora já eram escassos, mas também por causa do frio. Fizemos uma pequena reunião e resolvemos que um grupo tentaria caminhar até esse ponto parado ao norte.

Fomos eu, um brasileiro e mais um estrangeiro. Peguei água e o resto de bolacha, e fui muito contundente com meu irmão: não importa o que acontecesse, se nosso ônibus conseguisse ser desatolado de alguma maneira, eles deveriam ir atrás de nós.

Uma meia hora antes um estrangeiro estava lendo um guia da Bolívia e nos contou um caso interessante: nos anos 90, um ônibus encalhou no meio do salar e todos os passageiros morreram de insolação ou desidratados porque tentaram caminhar para fora do deserto. Portanto a nossa caminhada não era exatamente uma medida prudente, mas tínhamos um alvo, um ponto que tínhamos que alcançar, o que pareceu fazer a decisão menos insensata.

Foram três horas de caminhada até chegar ao nosso destino, que realmente se comprovou ser um ônibus. Um ônibus lotado de passageiros que vinham de La Paz em direção a Uyuni. O ônibus havia quebrado e chegamos no exato momento, no exato mesmo, em que o motorista dava a partida para seguir viagem, depois de ter conseguido resolver o problema.

Aí instalou-se a dúvida: e agora, partimos para Uyuni ou voltamos para o nosso ônibus? Para nossa sorte, vimos que um jipe se aproximava no sentido contrário, e resolvemos avisar os estrangeiros daquele ônibus sobre nossa situação (àquela altura, não confiava mais nos bolivianos), pedindo com bastante ênfase para que avisassem nossa companhia de ônibus sobre o que havia acontecido. “Pessoas vão morrer se não chegar ajuda”, lembro de ter dito para uma norueguesa, com ar bastante dramático. “Inclusive noruegueses”, reforcei. Um pouco de ufanismo não faria mal. Também passamos os telefones das embaixadas de todos os países representados no nosso ônibus — antes de partir, alguém que possuía um guia com os telefones nos passou os números.

Descemos do ônibus, que seguiu viagem, e corremos parar o jipe. Um motorista e um casal de senhores bolivianos estavam no carro. Contamos o que havia acontecido e eles aceitaram nos levar de volta até nosso ônibus. Fomos recebidos com aplausos. Finalmente, seríamos salvos. Descemos do jipe, fechamos a porta, e o carro se foi diante de uma massa incrédula: o que aconteceu?

Explicamos a situação. O motorista do jipe iria para um lugar remoto, não poderia dar carona, mas havia se comprometido a ligar e pedir ajuda assim que conseguisse sinal, em cerca de duas horas de viagem, segundo ele. Sentamos e esperamos.

eram mais de seis da tarde, voltava a fazer bastante frio, quando uma caminhonete chegou até nós. O motorista nos avisou que o socorro havia chegado.

Ele disse: vêem aquele ponto lá ao norte?

Era um ponto minúsculo no meio do deserto.

“O ônibus está lá e não vai descer porque há perigo de ficar atolado, então vocês precisarão caminhar até lá.” Eles levariam as malas na caminhonete enquanto os passageiros iriam a pé. Eu e os outros dois, que já tínhamos caminhado por mais de três horas, e mais uma americana que estava passando muito mal, com algum tipo de alergia, pegaríamos carona com as malas. Por conta disso, fomos os primeiros a chegar até o novo ônibus.

A primeira surpresa: quando fui subir, o motorista me impediu. Disse que estava consertando algo e que precisávamos ficar pra fora. O tempo foi passando e o restante das pessoas começaram a chegar. Até o último chegar, devem ter se passado umas duas horas. Já eram mais de oito da noite, e o ônibus de resgate continuava “sendo consertado”. Houve algum tipo de problema no volante, pelo que entendi. Quase uma hora depois, um frio de matar e muita revolta, o ônibus finalmente deu a partida: podíamos subir.

A segunda surpresa: o ônibus de resgate que nos mandaram não só estava estragado, mas também era menor que o original — ou seja, várias pessoas não tinham onde se sentar. Ainda faltavam 13 horas de viagem. Ficou acordado que os homens se revezariam entre os bancos e o corredor. Fui um dos que começou a viagem sentado no corredor. Foram mais ou menos três horas chacoalhando muito quando troquei de lugar com meu irmão. Mais duas horas e o ônibus finalmente parou num casinha de beira de estrada, um restaurante.

Estávamos absurdamente famintos, mas lembrei que não tinha dinheiro. Meu irmão olhou na carteira e a única coisa que encontrou foi uma nota de um dólar que carregava para atrair sorte. Como aquilo evidentemente não estava funcionado, perguntamos ao dono do restaurante: o que dá pra comer com um dólar? Ele disse que poderia fazer um pão com ovo.

Olhando em retrospecto, me parece óbvio que eu não deveria ter comido um pão com ovo, mas naquele momento um pão com ovo me parecia um Kobe beef mal passado. Manda o ovo. Dividimos o pão e tomamos o resto de um refrigerante que sobrou na mesa de alguém. Retomamos a viagem.

Faltavam mais ou menos duas horas para chegar em La Paz quando senti um movimento estranho no estômago. Precisava ir ao banheiro. E rápido. Levantei e parti saltitando entre as pessoas que se acumulavam no corredor — quem sabe uma decisão infeliz. Ao chegar ao banheiro no fundo do ônibus, claro, ele estava ocupado. Gritei desesperado que precisava usar o banheiro.

Prefiro não entrar em detalhes sobre a sequência de eventos, mas o que posso dizer é que aquela cueca foi jogada pela janelinha do banheiro. Não tava fácil.

Corre mano.

O drama de La Paz e a volta para o Brasil

Quando finalmente chegamos a La Paz, fomos até o hostel que já estava reservado. A dor de barriga não estava nem perto de terminar, mas tínhamos banho quente, finalmente, depois de cinco dias e quatro noites. E uma cama. Na manhã seguinte conversei com meu irmão: apelei pra que cancelássemos o restante da viagem. O plano original era seguir para Lima e Machu Picchu. Ele concordou de pronto: vamos voltar pra casa o quanto antes.

Estávamos viajando com milhas da TAM, um problema sério quando se trata de trocar passagens. Por algum motivo não podíamos trocar a passagem pelo telefone, apenas numa loja da TAM, que não existia na Bolívia. Acionei um amigo do Brasil, o Diego Ribeiro, e ele conseguiu fazer a troca. Me mandou por email os números da reserva e partiríamos naquela mesma noite.

Malas feitas, seguimos para o aeroporto de La Paz. Fomos os primeiros na fila da TAM. Passamos o número de confirmação. Esperamos. Esperamos. E esperamos. O funcionário finalmente nos avisou: não estou conseguindo acessar essa reserva.

O que se seguiu foram quase duas horas ao telefone com o 0800 da TAM. Um problema no sistema naquela tarde havia cancelado nossa reserva, e o moço ao telefone jurava que não podia fazer nada. Era preciso voltar à loja no dia seguinte. O moço no aeroporto falava o mesmo. Desde o início da viagem, foi neste momento, quando percebi que realmente não iríamos embarcar, que chorei pela primeira vez. Chorei como uma criança. Estava cansado, com dor de barriga e só queria ir embora daquele país.

Vamos embora! Não, não vamos.

Falei com meu irmão e resolvemos que compraríamos novas passagens e depois pediríamos as milhas de volta.

Compraríamos — caso a máquina da Bolívia lesse o nosso cartão.

Não lia. Tentei em dois diferentes e sempre o mesmo recado: erro de leitura. Pensei: então vamos sacar. Fui até a máquina de ATM. Passavam das onze da noite. O limite permitido para saque ainda deixava a gente a alguns milhares de pesos de uma passagem. O próximo voo da TAM para o Brasil partindo de La Paz só sairia depois de cinco dias.

Abracei meu irmão e falei: okey, vamos manter nossa rota original. Vamos pra Lima e voltamos de lá. Mas a condição é que passaríamos a noite num hotel decente. E seguimos viagem rumo ao centro de La Paz em busca de um hotel.

No meio do caminho, como que por milagre, meu irmão olhou pra mim e disse: Breno, os nossos passaportes? Coloquei as mãos no bolso e não acreditei. Quando fomos fazer o check-in, deixamos os passaportes com o atendente. Na confusão, acabamos esquecendo lá.

A essa altura o nosso vôo já tinha ido embora e como o próximo voo da TAM era apenas dali a cinco dias, havia uma chance considerável que eles ficariam fechados até o dia daquele vôo. Gritamos com aquele taxista igual o nosso motorista do jipe gritava quando o para-brisas estourou. Eram duas lhamas parindo no banco traseiro do táxi.

Quando chegamos ao aeroporto, benzajesus, uma única atendente solitária ainda estava por lá. E tinha os nossos passaportes.

Voltamos para La Paz, pegamos um hotel e dormimos. Nosso plano era seguir para Lima no dia seguinte. Acordei cedo pela manhã e, meio que por acaso, resolvi checar o email na recepção do hotel. Havia um email do Diego, que havia trocado a nossa passagem no Brasil. Ele dizia que fora avisado que houve erro no sistema, e terminava falando que por causa desse problema, a nossa reserva de Lima também havia sido cancelada. Em outras palavras: não tínhamos vôo para voltar para o Brasil. E terminava perguntado se deveria agendar para dali a cinco dias de La Paz mesmo.

Olhei todos os sites e não encontrei nenhum voo de La Paz para o Brasil. Havia um único voo, naquela noite, pela GOL, que saía de Santa Cruz para Guarulhos. É isso, pensei. Vamos pra Santa Cruz e naquela noite partiríamos para o Brasil. Comprei a passagem e fui acordar meu irmão.

Só havia um problema: estávamos em La Paz e quando comprei a passagem, não refleti a fundo quanto tempo demoraríamos para chegar em Santa Cruz. Na minha cabeça a Bolívia era pequena o suficiente e chegaríamos sem problemas antes do horário do vôo. Se Uyuni a La Paz levava 15 horas, obviamente a Bolívia não era pequena o suficiente. Mas naquele momento eu claramente não raciocinava direito.

Eu só queria a privada da minha casa!

Fui direto acordar meu irmão, arrumamos a mala e fomos para a rodoviária.

Chegamos lá e descobrimos que uma única companhia fazia o trajeto La Paz-Santa Cruz. Mas o problema: a viagem durava 14 horas. Não daria tempo.

Falei pro meu irmão que então procuraríamos um vôo. Perto da rodoviária encontramos uma agência de turismo. “Moça, precisamos pegar o primeiro vôo para Santa Cruz”. Ela sorriu como se estivéssemos pedindo um prato de arroz na China. Olhou uma companhia, depois outra, depois mais uma. E sentenciou, triste: não há vôos disponíveis para Santa Cruz hoje.

Des-mai-a-do.

Eu estava tão desnorteado que nem sei o que faríamos em seguida. Quando estávamos saindo da agência, a porta já estava aberta, a mulher gritou: pera, pera, tengo un vuelo de TAM!

TAM?, eu perguntei.

Sim, ela disse. Transporte Aereo Militar!

Agora é uma boa hora pra dizer que eu tenho medo de avião. Medo, no caso, é um eufemismo forte. O que eu sinto por avião é a mesma coisa que eu fiz no banheiro daquele ônibus. O que eu sinto por um avião estatal, então, está além da descrição em palavras. Mas diante das circunstâncias, não houve jeito: era esse. Vamos embora.

O voo sairia às seis da tarde. Chegamos no aeroporto ao meio-dia. Perto das cinco, começou a cair uma chuva descontrolada em La Paz. Fizemos o check-in e entramos na pista, a pé, sem fingers ou ônibus. Passamos três aviões gigantes e, lá no fim, debaixo de chuva forte, avistamos um aviãozinho de turbo hélice, daqueles que tem a barriga quase encostando no chão.

Não é brincadeira mas o avião parecia estar carregando vítimas de uma guerra que iam embora de La Paz. Tinham quatro ou cinco senhoras em cadeiras de rodas. Senhores que não paravam de tossir e espirrar. Não sei do que se tratava, mas entramos e sentamos nos nossos lugares. Lembro de ter comentado com meu irmão:

“O fim mais óbvio pra essa viagem é o avião cair.”

Meu irmão adora aviões. Ele deu risada.

Decolamos e depois de 10 minutos de voo, com o motor gritando na orelha, escuto um barulho ensurdecedor, como se fosse uma bomba. Olhei pro lado e vi os olhos esbugalhados do meu irmão. Se o Brian está com medo, meu cérebro pensou, então é porque essa merda é séria. Essa porra vai cair.

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Não caiu e não sei o que foi aquele barulho.

Mas o final da viagem não seria sem emoções: um civil qualquer que estava sentado numa cadeira logo a frente levantou-se do banco e entrou na cabine dos comandante. Acompanhei, curioso e noiado, como sempre dentro de um avião. Logo depois, o piloto saiu da cabine e se sentou no lugar dele. E seguimos viagem. Pensei: muito estranho.

E segue o voo, e o piloto dormindo.

E avisos de que o pouso foi autorizado, e o piloto dormindo.

Eu falava pro meu irmão: “Brian, que caralho-esse-negócio-não-tá-certo. Será que aquele cara vai pousar essa bagaça!?”.

Porque não era a nossa hora, aquele cara pousou aquela bagaça — ou o copiloto pousou, não sei. Mas o piloto estava dormindo à nossa frente.

Chegamos em Santa Cruz, pegamos o vôo da GOL e voltamos para o Brasil. A dor de barriga durou mais de uma semana, mesmo com visita ao médico e tratamento. Ao todo, foram nove quilos perdidos. Nove.

No voo da volta, me lembro de ver o mapinha na tela da poltrona mostrando que já estávamos quase em território brasileiro. Antes de cruzar os céus do Brasil, fui ao banheiro e, sentado, fiz uma promessa que cumpro até hoje: “nunca mais volto pra esta merda”

Textos e imagens enviados por Breno e Brians Baldrati;
Link original: http://bit.ly/21deaxo
Instagram: @isthisreal e @brenobaldrati


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